sábado, 2 de agosto de 2008

o nome predicativo do sujeito- Crónica de António Lobo Antunes)


Era uma escola pequena, a minha, com um professor tirânico que puxava pêlos do nariz: ramal da Beira Baixa, afluentes da margem esquerda do Tejo, o nome predicativo do sujeito. Diz o nome predicativo do sujeito, idiota

Escrevo esta crónica num caderno pautado, eu que nunca escrevo em papel pautado porque me lembra a escola, e volto a ter uma caligrafia infantil.
Era uma escola pequena, a minha, com um professor tirânico que puxava pêlos do nariz: ramal da Beira Baixa, afluentes da margem esquerda do Tejo, o nome predicativo do sujeito.
- Diz o nome predicativo do sujeito, idiota
e nós lá gaguejávamos o nome predicativo do sujeito, cheios de dúvidas, a hesitar. O professor escolhia um pêlo, desprezando-nos
- Nunca hás-de ser ninguém na vida e o facto do nome predicativo do sujeito me impedir de ser alguém na vida preocupava-me. Que raio de importância tão grande o nome predicativo do sujeito tem? Ou o ramal da Beira Baixa? Ou os afluentes da margem esquerda do Tejo? Meu Deus a quantidade de coisas que existem entre mim e o meu futuro. Outras frustrações: não usar óculos, nunca ter partido uma perna.
Aparelho para os dentes sim, o que me compensava um bocadinho.
E uma funda para a hérnia, mas isso era um adereço invisível, sobretudo comparado com uma perna em gesso, com os dedos do pé de fora, de unhas sujas de branco. E canadianas, que sorte. E coxear, que felicidade. E a maravilha de poder dar com elas num rabo a jeito. E autografarem-me o gesso. Olha, uma mosca pequenina agora, à volta da minha mão. Igual às grandes mas minúscula. Poisada na caneca. Poisada no tampo. Poisada na manga do blusão.
O mapa ao lado do quadro, com os países de cores diferentes. A Alemanha amarela, a Noruega roxa. Portugal não me recordo. Uma bolinha com um ponto ao centro em Lisboa, uma bolinha menor, com um ponto também ao centro, no Porto. O mar azul. Ilhas e ilhas: os Açores, Madagáscar.
A Indonésia dúzias. O professor
Estás a olhar para ontem, idiota?
E é verdade, estou a olhar para ontem, sempre olhei para ontem. Até o amanhã é ontem às vezes. Charlie Parker interrompeu uma vez uma gravação, atirando com o saxofone, a gritar Já toquei isto amanhã e ninguém foi capaz de convencê-lo a continuar. Como eu o compreendo, como às vezes sinto Já escrevi isto amanhã e rasgo tudo. Um trabalho difícil, quase tão difícil como viver. Acho que não sei viver. Acho que não sei viver? Acho que não sei viver como os outros vivem. Que dias os meus, repletos de surpresas, de mistérios. De espantos.
Sou um saloio: não há montra de loja que não me encante, sobretudo as lojinhas minúsculas de certos bairros, mercearias, roupas, brinquedos.
Apetece-me logo comprar vassouras, aipo, um macaco de corda, a camisa mais feia que descobrir na montra. A beleza das coisas feias fascina-me. O seu ar de desamparo, coitadas. A cinquenta metros da casa dos meus pais existia um estabelecimento de vestidos e artigos correlativos chamado Marijú. O Paraíso deve ser no género da Marijú, com empregadas a cheirarem bem que me faziam cócegas na alma. Não se calcula o que a Marijú alegrou a minha infância. A Marijú, do meu ponto de vista, era o centro do quarteirão. Para indignação minha a minha mãe considerava a Marijú o supra-sumo do horrível, a ignorante. Em matéria de gosto os meus pais, aliás, deixavam imenso a desejar: detestavam quadros com gatinhos a saírem de botas velhas, palhaços de porcelana a chorarem, dálmatas cromados em tamanho natural. Onde se viu tanta cegueira? Serras do sistema galaico-duriense: Peneda, Soajo, Gerez, Larouco, Falperra, etc. Ficou tudo na minha cabeça graças ao medo do professor, conhecimentos utilíssimos, até ele apreciava a Marijú: tenho de concordar que em espírito artístico superava os meus pais. O problema era o nome predicativo do sujeito. Sem o nome predicativo do sujeito a minha infância teria sido perfeita. Pretéritos, pronomes, tabuada. E os olhos de Charlie Parker tristíssimos nas fotografias. Escrever como ele toca. Vá, António, levanta-te do papel com as palavras: quem disse que não eras capaz, és capaz, levanta-te do papel com as palavras. Fecha os olhos e elas saem sozinhas. As palavras são notas, repara. Não penses em nada, abandona-te. O mundo inteiro está dentro de ti. Anteontem almoçaste com os teus camaradas.
Faltava o Zé
(duas fotografias dele à minha frente)
estamos amputados do Zé, mas que milagre de sintonia entre nós desde os confins de Angola. Que nenhum de vocês se atreva a morrer como o Zé, ouviram? Primeiro mato-vos outra vez e a seguir ralho-vos. Não quero ficar mais pobre ainda. O Zé fardado de coronel na participação do jornal, com versos de Goethe por baixo. A propósito: nunca falamos de Goethe, pois não?
A Marijú. O ramal da Beira Baixa. A primeira vez que vi uma mulher nua e me apeteceu ajoelhar: não tocar-lhe, não beijá-la, ajoelhar apenas. E ficar que tempos assim.
O único milagre que conheço. O professor
- Estás a olhar para ontem?
e estou de facto. Neste preciso momento, senhor professor, só me apetece olhar para ontem.

14 comentários:

Nanda Assis disse...

pakmas, muito bem escrito.
me deu saudades da época de escola, como é bom lembrar...
bjosss...

Anónimo disse...

Clap, é claro que velhinha que sou, conhecia, mas gostei tanto de ler outra vez! Já despachei dois pretendentes hoje e um deles foi com a justificação de que tinha que vir ao blogue responder a um rapazinho de olhos maravilhosos que agora usa uma máscara só para ver se a Maria Bernarda deixa de lhe escrever. Mas a Maria Bernarda é uma lapa! Que chatice! Tem paciência. És o meu divertimento deste tempo morto... Maria Bernarda

Ácido Cloridrix HCL disse...

Convidamos-te a participar em mais um desafio sobre Sexo.
Desafio: Faça a sua “Bucket List” sobre Sexo. Liste as 5 coisas ou fantasias sexuais que gostaria de fazer, no que respeita a sexo, nesta vida, antes de morrer. Para quem pretenda aceitar o “desafio”, sugerimos se concentre sobre a questão e responda antes de ler os comentários dos outros intervenientes. Gratos antecipadamente pela participação,,,, HCL e H2Oh!
Link: http://sexohumorprazer.blogspot.com/2008/08/faa-sua-bucket-list-sobre-sexo.html

CLAP!CLAP!CLAP! disse...

eia!!! então já estámos no céu???...lol
Mia logo sim??
inda vai muito cedo aqui!!!

CLAP!CLAP!CLAP! disse...

ehehe
onde leu Mia deve ler-se Mais!! ehehee

Anónimo disse...

as crónicas dele são, quase sempre, maravilhosas.

CLAP!CLAP!CLAP! disse...

agora ficaste "Candide"?..over!

Passiflora Maré disse...

Já li a crónica aí uma meia dúzia de vezes. E Também já a li amanhã e depois de amanhã. É certo.
Há-de entranhar-se-me nas veias como a velhice, que também é amanhã e também é épica!!!

CLAP!CLAP!CLAP! disse...

Acho q se mantivermos sempre um grande ritmo de acção, nos livramos disso!

Passiflora Maré disse...

Não se morrer-mos mesmo velhos, de velhice, para além do 89 anos...

Passiflora Maré disse...

correcção atomática: morrermos.

CLAP!CLAP!CLAP! disse...

Que tamos para aqui a pensar e a dizer?
Ate Mestre Agostinho da Silva dizia, naõ ter a certza da morte... (antes de morrer,claro!)

CLAP!CLAP!CLAP! disse...

Nao me vai esclarecer acerca do cheiro no rio?

CLAP!CLAP!CLAP! disse...

PM:
CUM-PREN-DI-TE!
Obg!