quinta-feira, 23 de outubro de 2008

«Há para aí três pessoas cultas em Portugal» M.F.Monica


O que é que se pergunta primeiro a uma potencial boa entrevistada como a Maria Filomena Mónica [MFM]? Ajude-me a ser original....

Onde nasci, que idade tenho...
Boa ideia. Mas o pretexto é o seu livro, uma colectânea de crónicas publicadas no Público, três horas de puro prazer de leitura...

Obrigada.

De nada. Ainda por cima, com aquela escrita que alguns pensam que foi inventada ontem, e a que agora chamam «criativa»...

E até há cursos de escrita criativa!

E isso ensina-se?

É muito difícil ensinar seja o que fôr. Mas ensinar escrita criativa? Para escrever de forma criativa, temos de ir para casa e ler os melhores livros da literatura portuguesa e mundial. E ler boa imprensa.

E ter sentido de humor e de observação... Vou irritá-la: nas suas crónicas noto, não me pergunte porquê, um sentido de humor muito... masculino.

Engraçado... Há outras pessoas, até familiares meus, que acham que tenho um sentido masculino de olhar a realidade... Mas isso vem do machismo: não choro, trabalho, não chego atrasada... Até ter escrito o Bilhete de Identidade [uma autobiografia], recusava-me a acreditar que houvesse diferenças entre géneros. Só depois desse livro é que percebi que havia mesmo homens e mulheres, constatação que, feita aos 62 anos, peca um pouco por tardia. Enfim, na parte anatómica já tinha notado diferenças. Mas no olhar sobre a realidade, não sabia que as havia. Pelas reacções dos homens àquele livro, entre o machismo e a infantilidade, em contraste com as reacções das mulheres, que se identificaram muito com o que eu tinha escrito, percebi que essas diferenças existem.

Se eu lhe perguntar se sabe cozinhar, por exemplo, soa esquisito... É uma pergunta que se faz aos homens, já que as mulheres é suposto saberem...

Pois. E é que não sei mesmo. Pertenço a uma classe social e a uma época em que havia as criadas. Nós tínhamos empregadas. A minha mãe não punha os pés na cozinha e nós também não. Depois de casar, resolvi não facilitar. Se eu cozinhasse, iria gastar muito mais tempo do que a parte masculina do casal.

E a partir daí, não cozinhou, mas por militância.

Exacto, por militância!

Sente que, por vezes, é desconcertante?

Isso terá de ser você a dizer. Eu vejo-me ao espelho todos os dias e, para mim, sou o mais concertante possível!

Na contra-capa deste livro, Nós, os portugueses, adverte-se o leitor sobre a sua animosidade contra o Estado e a Igreja. Mas encontrei outro fio condutor: a preocupação com a memória, ou a falta dela. Nos indivíduos e na sociedade.

A memória e, neste caso, a falta dela, começou a ser central na minha vida a partir do momento, em 1995, em que foi diagnosticada Alzheimer à minha mãe. E é complicado lidar, durante 11 anos, com uma mãe neste estado - uma mãe com quem eu já tinha pouca intimidade, e que tinha sido uma figura muito dominadora, mas inteligente e que eu respeitava. E tenho medo que seja hereditário. Ainda por cima, sempre tive má memória. E, por outro lado, tenho memória de coisas que não interessam nem ao Menino Jesus! Gostava que alguém - não um psicólogo, porque sou pouco dada às psicologias... - me explicasse o que é que a memória retém e porquê... Se o meu cérebro fosse um disco rígido eu fazia delete a uma data de coisas e ficava com espaço para as importantes. As pessoas, quando perdem a memória, deixam de ser pessoas.

E a memória colectiva, como anda? Isso aplica-se ao País?

Aplica-se. Faz-me muita impressão, por exemplo, pensar que as grandes famílias tradicionais portuguesas, e que deveriam ter orgulho nos documentos da família, os deixem perder, sem dar qualquer testemunho deles. Ainda há uns anos, tentei convencer uma descendente do Cazal Ribeiro, um politico importante do século XIX, a depositar o seu espólio na Torre do Tombo. Tinha cartas do Eça, do Herculano, etc.. Tentei tudo. Mas as pessoas não ligam. As pessoas orgulham-se de solares do minho ou quintarolas, mas com o património histórico dos seus antepassados não há qualquer sensibilidade. E o País não faz a mais pequena ideia, por exempolo, de quem são as figuras da sua toponímia! Os portugueses não sabem porque a História é mal dada. Aliás, não há uma elite, entre nós. Há para aí umas três pessoas cultas em Portugal.

Costuma dizer que a palavra «nós» a arrepia. Não vai em grupos. Mas este livro chama-se «Nós, os portugueses»... Os portugueses também a arrepiam?

«Nós» é também o título de um poema do Cesário Verde... Mas já em miúda eu nunca dizia «nós vamos aqui e ali». Era sempre «eu». No casamento digo sempre «hoje vou ao cinema», «ou eu vou de férias amanhã». Nunca é «nós», mesmo quando vamos os dois. Eu sou portuguesa, mas há traços em mim que são fruto de uma vivência no esatrangeiro. Entre eles, sei lá, o de não aceitar a corrupção camarária. Por isso é que fiz umas obras aqui em casa recusando sempre gratificar fosse que fiscal fosse. Pensei: «Vou fazer tudo como se vivesse em Inglaterra». Eu critico os portugueses, mas as pessoas que criticam - e estou a pensar no Eça, sempre acusado de estrangeirado - são as pessoas que mais amam o País.

E José Sócrates, arrepia-a?

Não gosto dele, mas não me arrepia. É um pequeno tecnocrata. Nunca tive esperanças nele, sempre o achei um bocado irritante, porque está convencido de que é melhor do que é. E não é muito bom. Usou o truque do «quero, posso e mando», coisa de que os portugueses até gostam e os capitalistas precisam. Não me desiludiu. Já com o Santana Lopes, esperava rir-me imenso, mas, passada uma semana, já não lhe achava graça nenhuma...

A MFM também é um pouco estrangeirada. E quando saíu pela primeira vez do País, para Londres, nos anos 60, as diferenças ainda eram mais gritantes...

Foi um choque cultural. Eu vivia numa redoma. Foram 14 anos num colégio de freiras. Ia para a escola acompanhada por uma empregada, até aos 16 anos, o que prova a confiança que a minha mãe tinha em mim - e na minha irmã, mas essa é o oposto de mim, um modelo de virtudes... E o País, para mim, eram as famílias conhecidas. Depois, a minha mãe, com medo que eu fizesse ainda mais disparates do que aqueles que já tinha feito, deixou-me ir para Londres (embora para um colégio interno, inicialmente). E Londres era o centro do mundo. Conheci gente de outras nacionalidades, de outras raças, de outras religiões.

Mas gosta do tempo em que nasceu?

Odeio.

Em que outra época preferia ter nascido?

Em 1847, para aí...

Em Portugal?

Ah, não, então preferia ter nascido num país nórdico ou em Inglaterra... Estranhamente, também gosto muito de Itália... É tudo muito bonito: o País, as mulheres, os homens... Mas gosto muito de Inglaterra porque prezo muito as liberdades individuais. E comungo das velhas tradições liberais anglosaxónicas.

Mas porquê aquela data, presumo que, nesse caso, em Portugal?

Gostava de ter chegado à Regeneração, ao golpe do Duque de Saldanha, em que Fontes ascendeu a Poder, aí com seis ou sete anos...

Isso é a visão de uma historiadora. Afinal, não quereria nascer nessa época. Queria era viajar no tempo e observar com os seus próprios olhos um período que lhe interessa...

Não. Gostava de ter vivido nessa época. Foi a época em que houve mais liberdade em Portugal, de expressão, de pensamento: é entre 1852 e 1890, quando até ao ultimatum.

Mais do que depois do 25 de Abril?

De certa maneira, sim, mas para um grupo muito pequeno. Eu teria de ser da classe média alta ou da aristocracia. Se eu pudesse participar da Geração de 70, do grupo do Jaime Batalha Reis, do Eça, do Ramalho, do Antero, do Bordalo Pinheiro... Naquela altura diziam-se coisas que hoje dificilmente seriam publicadas nos jornais.

Hoje dava processo, naquele tempo era à bengalada...

Nem bengalada. Numa revista satírica do Rafael Bordalo Pinheiro, chamada António Maria, o Fontes era zurzido de alto a baixo. Imagine uma revista, hoje, chamar-se «José Sócrates» a bater todos os dias no primeiro-ministro... Depois veio a República, período que não respeitou nada os direitos fundamentais, ao contrário do que muitos pensam. E o salazarismo foi um período horrendo. Eu sei, porque o vivi... Portanto, recuando no tempo, eu ia para a 2.ª metade do séc. XIX.

Embora a condição feminina nessa altura fosse bastante mais insustentável...

Ah, pois, esqueci-me de dizer: teria de ser homem! Se fosse mulher só mesmo da alta aristocracia do Paço.

Se a palavra «nós» a arrepia, a palavra «não» deleita-a. Porquê?

Foi a primeira palavra que aprendi, ainda bébé. Tenho tendência a começar as frases com um «não concordo com nada disso!». «Mas eu ainda não disse nada», diz-me o adversário...

O adversário?

A pessoa com quem estiver a falar, pronto... (Risos) À partida, sou adversarial.

Algum político a surpreendeu, pela positiva, nos últimos tempos?

(Longo silêncio) Não.

E noutras áreas?

Não sei. Por exemplo, admiro muito o dr. Albino Aroso, um médico de direita, mas com um grande trabalho na área do planeamernto familiar. Pelo mesmo motivo, o dr. Luís Graça, que garantiou que a lei do aborto seria cumprida nos hospitais. Os médicos andavam para aí a dizer que não era possível, por causa da objecção de consciência, como se fossem todos objectores. Na verdade, o aborto era praticado por parteiras em vãos de escada e, portanto, não lhes dava status. O problema era esse. E depois, a maior parte são homens....

Mas tem políticos-ódio-de-estimação?

Não sei... Deixei de ver televisão ha dois anos. Mais do que o Governo, chocam-me os deputados. Ninguém sabe quem são. Nem têm liberdade de voto, como no caso do casamento homossexual... Assim, bastavam cinco deputados, um de cada partido, com uma determinada quota de votos, proporcional ao resultado eleitoral. E pronto, poupava-se um dinheirão. Mais: a função nobre dos parlamentares é vigiarem o que os governos andam a fazer. E não se passa nada disso. E lêem papéis! Eu não oiço o discurso de um tribuno que lê um papel.

Continua a dizer-se de esquerda, mas desconfia do Estado...

Estranho, não é? É que a direita, em Portugal, sempre foi autoritária e nunca prezou as liberdades. Não é liberal. Nessa medida, eu tenho de ser de esquerda. E os contrastes sociais, a pobreza, chocam-me. E os nossos ricos não têm dimensão social. Não devolvem á comunidade uma parte da riqueza que acumulam. Não há, sequer, uma tradição de filantropia.

Essa liberdade anti-estatal também pode dar fenómenos como os da actual crise financeira...

Há duas dimensões na liberdade: nos costumes, não há limite (dentro do respeito pela liberdade dos outros). Na Economia, nem o Adam Smith alguma vez achou que a «mão invisível» resolvia os problemas todos. E definiu o tipo de intervenção que a sociedade deve ter para que prevaleça o bem comum. Ontem estive a reler O Capital e o Karl Marx explica que tudo o que é sólido se derrete. O Estado deve preocupar-se com a redistribuição da riqueza, com a protecção das vítimas (de uma crise como esta), com um sistema de educação decente... disto nem quero falar mais. Aliás, a Saúde está muito melhor do que a Educação.

Arrasou os exames, nas suas crónicas... Mas mesmo assim, se calhar, nunca houve em Portugal, tanta gente tão qualificada.

Temos de ver o que quer dizer «qualificada». Se é ter um doutoramento, há muita gente nas Humanidades que tem um doutoramento e não devia ter. Há demasiado dinheiro para doutoramentos. E há muita gente que não os completa. Aliás, dá-me ideia de que, nas ciências exactas, as pessoas estão mais preparadas. Eu dei um curso de Literatura, na Faculdade de Letras, e eles recusavam-se a ler livros! Queriam fotocópias de capítulos. Não dou! O Ministério da Educação não confia nos professores e não os deixa sozinhos a corrigir testes qualitativos. Quer que eles sejam meros carimbadores automáticos de regras malucas que inventaram, como as do secretário de Estado Valter Lemos, que acha que há umas fórmulas matemáticas para avaliar o sucesso escolar. Como as das respostas de escolha múltipla, que estupidifica e só serve para preencher totobolas... Não distingue o bom do mau aluno, nem o criativo do marrão. Mais: agora, para os mentecaptos pedagogos do ME, existe uma coisa chamada Língua Portuguesa e outra Literatura Portuguesa. Com exames diferentes!

E deve haver avaliação de professores?

Sim, mas de outra forma. Com um corpo de inspectores de professores muito bem pagos. E deviam ser classificados por um director de escola - coisa que não existe em Portugal.

Será que há uma faceta salazarenta do País que continua a influenciar as nossas vidas?

Não acho. Nem na política, nam nas mentalidades, nem nos costumes. O Salazar é de um país onde 80% trabalhava na agricultura e não tinha poder de reivindicação. As suas caracterísitcas são as de um camponês. Isso acabou. Hoje as pessoas queixam-se, barafustam.

E os Grandes Portugueses? Salazar ganhou o concurso...

O erro fatal foi a RTP não ter incluindo o nome, logo de início, com medo que ele ganhasse. Chamaram a atenção das pessoas e resultou ao contrário. Mas não tem significado histórico nem sociológico.

Mas invocar o Salazar não é uma forma que as pessoas encontram de dizer o tal «não» de que a MFM tanto gosta?

O Salazar poder ser uma forma de contestação... Isso é que me espanta.

Uma mulher tão cosmopolita desconfia tanto da Europa, ou do federalismo europeu, porquê?

Desconfio. Eu não elegi o dr. Durão Barroso. E, mais importante, se quiser derrubá-lo, não posso. Mas gosto da Europa, da sua cultura, gosto de viajar pela Europa e quero qiue os meus alunos, sempre agarrados às saias da mãe, também o façam.

O que, agora, é mais fácil, graças à existência de uma União, sem fronteiras...

Essa é a parte de que eu gosto.

Um dos seus ódios de estimação é o fundamentalismo islâmico, senão mesmo o Islão.

Eu até fui a favor da intervenção no Iraque - no que me enganei redondamente. Não tinha bem a noção do que é o Médio Oriente. Sociedades tribais, não baseadas na lei, mas no sangue. Assim, os EUA não deviam ter intervindo. O fundamentalismo religioso é das coisas mais tenebrosas.

E Guantánamo, não é tenebroso?

Também é. Se o Ocidente se afirma respeitador do Estado de Direito, tem de o praticar. É por aí que o Ocidente é superior. O Ocidente é superior a esses países - que tratam as mulheres da maneira que tratam, ainda por cima.

Ao invocar a superioridade ocidental ainda será acusada de xenofobia...

Esto a falar em on e consciente do que digo. Os valores que derivam da tradição iluminista, a razão, a liberdade individual e o Estado de Direito são superiores, na constituição da sociedade, aos valores que regem as sociedades islâmicas, em que não há separação entre o poder político e o religioso. Isto não tem a ver com raças nem xenofobia. Mas com a organização das sociedades.

E como explica que muita esquerda contemporize com essas sociedades?

É o anti-americanismo. E a esquerda tende a dizer que os islâmicos são pobres. Ora, muitos daqiueles países têm sociedades riquissimas. Não serve de desculpa. O que eu critico é o fanatismo. E isso aplica-se à sr.ª Pallin.

Por falar nisso, McCain ou Obama?

Desde que apareceu a Sarah Pallin, sem dúvida, o Obama.

Nas suas crónicas ressalta a impressão de que tem medo da morte - e contra-ataca com sentido de humor sobre ela. Estarei certo?

Não, não tenho medo. Tenho medo do envelhecimento - não físico, mas da degenerescência. E de ir para a um ventilador hospitalar.

E o que é envelhecer bem?

É não perder as faculdades intelectuais.

Sente que já tem idade para dizer o que lhe apetece?

Não é por uma questão de idade. Mas, no meu caso, quando se chega ao topo da carreira universitária, não se pode ser despedido... E há uma altura em que não precisamos de fazer mais concursos. Porque uma maneira de eles nos lixarem é cozinhar um júri que nos liquide. Há um enorme compadrio universitário. E machismo. Já ouvi tiradas do género: «Então ias com aquela aluna para a cama? É pá, se soubéssemos davamos-lhe um 17 e não um 14!».

E a MFM, tem tido sorte ao amor?

Nunca tive muita sorte ao amor, mas ao jogo tenho. As duas únicas vezes que joguei à roleta, ganhei logo! Em Londres, em 1970, e em Macau, em 1999. Imenso dinheiro! (Risos)