segunda-feira, 22 de junho de 2009

Forte ou Praça de São José da Pontinha




O triângulo de pedra no Ilhéu de São José que o João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz Teixeira construíram há 586 anos, para servir de âncora às suas caravelas, devia tornar-se agora o SÍMBOLO DO EPICENTRO GEOGRÁFICO DA MADEIRA , à semelhança da Notre Dame de Paris.

Segundo o matemático Buckminster Fuller, inventor da cúpula geodésica, o TRIÂNGULO é a figura geométrica mais forte que existe na terra. Os madeirenses não podiam arranjar melhor ícone e mais próprio para simbolizar as suas qualidades excelentes de determinação e de vivência!

PTRON


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Gripe de 1918/19



A Gripe de 1918/19 foi uma pandemia que se espalhou por quase todo mundo. Foi causada por uma virulência incomum do vírus Influenza A, subtipo H1N1. A pandemia matou mais de 500.000 pessoas nos EUA, e cerca de 50—100 milhões em todo o mundo.

Na actual avaliação da gripe das aves, a dita “Gripe Espanhola” de 1918 é um exemplo para as consequências mortais que uma mutação do vírus da gripe pode ter — e para compreendermos que estamos prestes a enfrentar as consequências de uma destas mutações.
A evolução

Espalhou-se rapidamente pelo mundo e causou em apenas 18 meses, entre 1918 e 1920, a morte de cerca de 50 a 100 milhões de pessoas – entre 2,5 a 5% da população mundial na época.

A origem geográfica da pandemia de gripe de 1918-1919 é desconhecida. Foi designada de «gripe espanhola», «gripe pneumónica, peste pneumónica» ou, simplesmente, «pneumónica».

A doença terá sido observada pela primeira vez a 4 de Março de 1918 no Campo Funston, no Kansas, nos EUA. Na altura, o vírus, também ele um H1N1, causava problemas respiratórios leves, mas era muito contagioso.

A doença foi observada também em Queens, Nova Iorque, em Março. Os primeiros casos conhecidos de gripe na Europa ocorreram em Abril de 1918 com tropas francesas, britânicas e americanas, estacionadas nos portos de embarque em França.
Em Maio, a doença atingiu a Grécia, Espanha e Portugal. Em Junho, a Dinamarca e a Noruega. Em Agosto, os Países Baixos e a Suécia. Todos os exércitos estacionados na Europa foram severamente afectados pela doença, calculando-se que cerca de 80% das mortes do exército dos EUA se deveram à «gripe espanhola».
Evolução temporal da pandemia

A pandemia de 1918/1919 desenvolveu-se em três ondas epidémicas:

1. A primeira, mais benigna, surgiu na Primavera e terminou em Agosto de 1918;
2. A segunda começou no Outono de 1918 e terminou entre os meses de Dezembro e Janeiro, tendo sido de extraordinária gravidade, afectando grande parte da população mundial e com uma taxa de letalidade de 6 a 8%;
3. A terceira e derradeira, começou em Fevereiro de 1919 e terminou em Maio do mesmo ano.

A pandemia caracterizou-se pela elevada morbilidade e mortalidade, especialmente nos sectores jovens da população e pela frequência das complicações associadas.

Calcula-se que afectou 50% da população mundial, tendo matado 50 milhões de pessoas, pelo que foi qualificada como o mais grave conflito epidémico de todos os tempos. A falta de estatísticas fiáveis, principalmente no Oriente (China, Índia, etc.) pode ocultar um número ainda maior de vítimas.

É provável que o vírus responsável pela pandemia esteja relacionado com o vírus da gripe suína, isolado por Richard E. Shope em 1920.

Em Portugal, verificou-se uma elevadíssima taxa de mortalidade, com duas ondas epidémicas e uma ocorrência muito marcada entre os 20 e os 40 anos, que terá causado cerca de 120.000 mortos.

ora deixa experimentar....

A caleche
Nikolai Gógol




A cidadezinha de B. animou-se muito quando nela se aboletou o regimento de cavalaria ***.
Antes disso, pasmava num tédio mortal. Quando, por acaso, passamos por esta cidade e olhamos
para as casas baixinhas e rebocadas de argila, emanando um incrível azedume, pronto ... é
impossível exprimir como se nos aflige o coração: tanto é o anojo, como se acabássemos de perder
ao jogo ou de dizer alguma coisa despropositada – é mau, mau, mau, e está tudo dito. Com as
chuvas, o barro desprendeu-se das paredes que de brancas se tornaram malhadas; os telhados são,
na sua maioria, cobertos de junco, como é hábito nas nossas cidades do sul; quanto aos
jardinzinhos, havia muito que o governador civil, com o intuito de melhorar a paisagem urbana, os
mandara cortar. Nas ruas não encontramos vivalma que não seja um galo atravessando a calçada
macia como uma almofada por causa da camada grossa de poeira acumulada que, à mínima pinga
de chuva, se transforma em lama; então, as ruas da cidade de B. enchem-se daqueles animais
corpulentos a que o governador civil local chama de franceses. Assomando os focinhos sisudos das
suas banheiras, levantam grunhidos tais que o viajante se vê obrigado a apressar imediatamente os
cavalos. De resto, é difícil encontrar um viajante na cidade de B. É raro, muito raro, que um
qualquer proprietário rural possuidor de onze almas camponesas e vestido de sobrecasaca de
nanquim rode pela calçada num híbrido de britchka e carroça, espreitando por detrás dos sacos de
farinha amontoados e chicoteando a sua égua baia atrás da qual corre um potro. A própria praça do
mercado tem um ar um pouco triste: a casa do alfaiate está disposta de maneira muito estúpida, não
oferecendo à praça a sua fachada mas a empena; ora, em frente desta está a ser construído há já
quinze anos um prédio qualquer de pedra e com duas janelas. Mais adiante ergue-se, isolado, o
tapume da moda, feito de tábuas pintadas de cinzento a condizerem com a lama, mandado construir
como modelo pelo governador civil nos seus anos jovens, quando ainda não tinha o hábito de
dormir logo após o almoço e de beber à noite, antes de ir para a cama, uma decocção qualquer feita
com bagas secas de groselha espinhosa: Noutros lugares, só paliçadas; no meio da praça, umas
lojecas minúsculas onde encontramos sempre uma fiada de roscas, uma mulher de lenço vermelho,
uma arroba de sabão, várias libras de amêndoa amarga, chumbo para a espingarda, pano demicoton
e dois encarregados comerciais jogando à porta da venda, todo o tempo, à svaika1 Porém, mal se
aboletou na cidade de B. um regimento de cavalaria, tudo se alterou. As ruas animaram-se,
tornaram-se coloridas – isto é, o seu aspecto mudou da noite para o dia. As casas baixinhas, volta e
meia, viam passar a seu lado um destro e esbelto oficial, de penacho na barretina, de visita a um
1 Jogo tradicional: um prego, ou cravo, com cabeça grande, é lançado, passa através de um anel e
espeta-se no chão (uma espécie do jogo do espeto). (N do T.)
camarada para falar com ele de promoções, do excelente tabaco ou mesmo para apostar às cartas
uma charrete que podia ser considerada regimental já que, sem sair do regimento, passava por todas
as mãos: hoje transportava o major, amanhã estava na cocheira do tenente, uma semana depois já a
ordenança do major voltava a untá-la de sebo. A paliçada de madeira entre os quintais estava toda
cheia de bonés dos soldados, pendurados ao sol; nalgum portão pendia, infalivelmente, um capote
cinzento; pelas ruelas andavam soldados com bigodes rijos como escovas de calçado. Entreviam-se
por todo o lado tais bigodes. Juntavam-se no mercado as citadinas com os seus púcaros – e já por
trás dos seus ombros se assomavam os bigodes. No estrado dos anúncios, já um soldado de
bigodaça ensaboava a barba a algum campónio atoleimado que só pigarreava esbugalhando os
olhos. Os oficiais animaram a boa sociedade que, antes disso, era constituída apenas pelo juiz, que
vivia na mesma casa que a viúva de um diácono qualquer, e pelo governador civil, um homem
ajuizado que dormia, literalmente, todo o tempo: depois do almoço até à noite e desde a noite até ao
almoço. Pois esta sociedade tornou-se ainda mais numerosa quando o alojamento do brigadeirogeneral
foi transferido para aqui. Os proprietários das terras circunvizinhas, de cuja existência
ninguém fazia a mínima ideia até então, começaram a frequentar a cidadezinha distrital para
visitarem os senhores oficiais e, até, para jogarem à banca, jogo esse com as regras já bastante
obscurecidas nas suas cabeças atulhadas de sementeiras, recados da esposa e caça à lebre. Tenho
muita pena de não me poder lembrar da ocasião em que o brigadeiro-general deu um grande
almoço; os preparativos do ágape eram gigantescos: na cozinha do general, o barulho das facas
ouvia-se até às portas da cidade. Para o banquete, todo o mercado se esvaziou completamente de
víveres, ao ponto de o juiz e mais a viúva do diácono se verem obrigados a comer apenas panquecas
de fagópiro e kissel2 de fécula de batata. O quintalzinho da casa do general estava atafulhado de
charretes e caleches. A sociedade convidada era exclusivamente masculina: oficiais do exército e
alguns proprietários rurais da vizinhança. De entre estes últimos, o mais notável era Pifagor
Pifagórovitch Tchertokútski, um dos principais aristocratas do distrito de B., o homem que maior
alarido armava nas eleições e que lá vinha agora na sua carruagem janota. Servira outrora num
regimento de cavalaria, tendo sido um dos seus mais importantes e destacados oficiais. Pelos
menos, era visto em muitos bailes e serões nas localidades por onde passava o seu regimento; basta
perguntá-lo, aliás, às meninas de Tambov e Simbirsk. Seria muito possível ter deixado também uma
vantajosa fama noutras províncias se não tivesse passado à reserva por alturas daquilo a que se
costuma chamar «uma história desagradável»: ou ele deu um sopapo a alguém, ou alguém lhe deu
um sopapo, não consigo lembrar-me, mas o certo foi que lhe sugeriram a passagem à reserva. De
resto, ele não perdeu com isso a dignidade, de modo algum: usava casaca de cinta alta à maneira da
farda militar, esporas nas botas e bigode sob o nariz, não fossem os fidalgos pensar que ele servira
2 Prato gelatinoso (N. do T.)
na infantaria, a que costumava chamar com desprezo peonagem ou, então, peoagem. Frequentava
todas as concorridas feiras a que a Rússia Interior – formada de mãezinhas, criancinhas, filhinhas e
senhores da terra gordos – acorria para se divertir nas suas britchkas, traquitanas, charretes e coches
de modelos tais que nem em sonhos nos aparecem. Tchertokútski sabia pelo faro onde um
regimento de cavalaria estava aboletado e logo se apressava a visitar os senhores oficiais. Apeava-se
de um salto, com muita destreza, da sua caleche levezinha, ou da charrete, e travava conhecimento
num instante. Nas últimas eleições dera à fidalguia um excelente almoço no qual anunciou que, se
fosse eleito decano da nobreza, poria os fidalgos a viver à grande. Em geral, armava-se em senhor,
como se diz na província, casara-se com uma mulher bastante bonita, recebera duzentas almas
camponesas de dote e vários milhares em dinheiro. O dinheiro foi aplicado imediatamente na
compra de seis cavalos realmente soberbos, de fechaduras douradas para as portas, de um
macaquinho domesticado, e no recrutamento de um mordomo francês. Ora, as duzentas almas de
dote, juntamente com outras duzentas que já eram dele, foram empenhadas no montepio para umas
transacções comerciais quaisquer. Em resumo, era um senhor da terra como devia ser... Um senhor
de mérito. No almoço do general compareceram, além deste senhor, mais alguns proprietários
rurais, mas não interessa falar deles. Os outros convidados eram todos oficiais médios do dito
regimento e ainda dois oficiais superiores: um coronel e um major bastante gordo. O próprio
general era robusto e corpulento e, na opinião dos senhores oficiais, nada mau como chefe, aliás.
Falava numa voz de baixo muito espessa e imponente. O almoço era extraordinário: três variedades
de esturjões, abetardas, espargos, codornizes, perdizes e cogumelos provavam que o cozinheiro
desde a véspera não ingerira uma gota de aguardente, e quatro soldados munidos de facas – os
ajudantes – haviam trabalhado toda a noite nos fricassés e nas geleias. Um sem-fim de garrafas – de
pescoço comprido as de Lafitte, de gargalinho curto as de Madeira –, um maravilhoso dia estival, as
janelas escancaradas, os pratos com gelo na mesa, o botão de cima desabotoado dos senhores
oficiais, o peitilho amarrotado dos portadores de casaca de grande capacidade, as conversas
cruzadas regadas a champanhe, em que soava mais alto a voz do general – tudo estava em perfeita
sintonia. Depois do almoço todos se levantaram com aquele peso agradável nos estômagos e,
acendendo os cachimbos, curtos e compridos, saíram para a soleira da porta com as chávenas de
café nas mãos.
As fardas do general, do coronel e, inclusive, do major estavam totalmente desabotoadas, pelo
que se viam um pouco os nobres suspensórios de seda; os senhores oficiais, porém, guardando o
devido respeito, mantinham o uniforme abotoado, à excepção apenas dos três botões de cima.
– Agora, podemos vê-la – disse o general. – Por favor, meu caro – dirigiu-se ao seu ajudante-decampo,
um jovem bastante lesto e de aparência agradável –, manda trazer a minha égua baia!
Agora, vão ver. – O general tirou uma fumaça, soltou uma baforada. – Não está cuidada como
devia: maldita cidade, não há uma cavalariça razoável. A égua (pff, pff) é bem boa!
– Então, há quanto tempo (pff, pff) Vossa Excelência tem esta égua? – perguntou Tchertokútski.
– Pff, pff, pff ... Ora bem, pff, não há muito. Há dois anos apenas que a comprei na coudelaria!
– Então, e Vossa Excelência comprou-a já adestrada ou adestrou-a em casa?
– Pff, pff, pff, ff,ff, pf .. f ... f ... pff, em casa. – Dizendo isto, o general desapareceu por entre o
fumo.
Entretanto, saiu um soldado da cavalariça, ouviu-se o bater de cascos e, por fim, apareceu outro,
de bata branca e enorme bigode negro, trazendo pela arreata uma égua que estremecia e se
assustava, e que, levantando de supetão a cabeça, por pouco não levantou também o soldado que se
agachara e mais ao bigode. «Então, então, Agrafena Ivánovna!» - dizia ele, levando-a até junto da
ombreira.
A égua chamava-se, por conseguinte, Agrafena Ivánovna; era forte e selvagem como uma
beldade meridional, bateu com os cascos nos degraus de madeira e parou bruscamente.
O general tirou o cachimbo da boca e, com ar de grande satisfação, pôs-se a olhar para Agrafena
Ivánovna. O próprio coronel desceu as escadas e abraçou Agrafena Ivánovna pelo focinho. O
próprio major deu palmadinhas na perna de Agrafena Ivánovna; os outros estalaram as línguas.
Tchertokútski desceu a escada e pôs-se atrás da égua. O soldado, esticando-se e segurando a
rédea, olhava os convidados nos olhos, como se quisesse saltar para dentro deles.
– Muito, muito boa! – disse Tchertokútski. – Uma estampa! Mas permita que lhe pergunte,
Excelência, como é o passo dela?
– O passo é bom; só que ... sei lá, cos diabos ... o parvalhão do auxiliar-médico deu-lhe uns
comprimidos quaisquer, e há dois dias que ela não pára de espirrar.
– Muito, muitíssimo catita. Mas terá Vossa Excelência carruagem apropriada para ela?
– Carruagem? ... Mas é uma besta de sela.
– Eu sei que é; fiz esta pergunta a Vossa Excelência apenas para saber se tem uma carruagem
apropriada para outros cavalos.
– Bem, na verdade não tenho carruagens suficientes: digo-lhe com toda a franqueza: há muito
que gostava de ter uma caleche moderna. Já escrevi a este propósito ao meu irmão que está neste
momento em Petersburgo, mas não sei se ele a manda ou não.
– Parece-me, Excelência – observou o coronel–, que não há melhor caleche do que a vienense.
– Tem toda a razão, pff, pff, pff.
– Eu, Excelência, tenho uma caleche extraordinária, de de verdadeiro fabrico vienense – disse
Tchertokútski.
– Qual? Essa em que veio?
– Oh, não! Esta é a do dia a dia, para eu andar por aí, mas a outra ... é espantosa, levezinha como
uma pena; se Vossa Excelência se sentar nela tem a sensação, desculpe a expressão, de estar a ser
embalado no berço pela ama!
– Ou seja, é confortável?
– Confortável? Muito: almofadas, molas, tudo como num quadro.
– Isso é bom.
– E quanta coisa lá cabe! Nunca vi nada parecido, Excelência. Quando estava no activo, metia
dez garrafas de rum e vinte libras de tabaco na bagageira; e ainda seis fardas, roupa interior e dois
cachimbos turcos, Excelência, tão compridos, desculpe a expressão, como uma ténia; ora bem, e nas
bolsas pode-se meter um boi.
– Isso é bom.
– Custou quatro mil rublos, Excelência.
– Pelo preço, tem de ser boa. Foi você próprio quem a comprou?
- Não, Excelência, veio parar-me às mãos por acaso. Quem a comprou foi um amigo meu, um
homem de qualidades raras, meu companheiro de infância. Vossa Excelência e ele, se se
conhecessem, encontrariam muita coisa em comum. Éramos tão amigos que o que era meu também
era dele, e vice-versa. Ganhei-lha ao jogo. Não quererá Vossa Excelência dar-me a honra de almoçar
amanhã em minha casa? Então verá a caleche.
– Não sei o que dizer ... Ir sozinho é, de algum modo ... A não ser que os senhores oficiais
também vão ... Não se importa? – Os senhores oficiais também, com certeza, peço-lhes
encarecidamente. Meus senhores, será para mim uma grande honra recebê-los em minha casa!
O coronel, o major e os outros oficiais agradeceram com vénias corteses.
– A minha opinião, Excelência, é que, se decidirmos comprar, tem de ser uma coisa boa, porque
uma coisa fraca não vale a pena. Eu, por exemplo ... quando amanhã me derem a honra de me
visitarem, vou mostrar-lhes algumas inovações na minha propriedade.
O general olhou para ele e soltou o fumo da boca.
Tchertokútski estava contentíssimo por ter convidado aqueles senhores oficiais; já se via, mental
e antecipadamente, a mandar preparar patés e molhos e lançava olhares alegres para os senhores
oficiais; estes, por seu lado, como que redobraram de simpatia para com ele, o que era visível nas
suas expressões e naqueles pequenos movimentos de corpo – uma espécie de vénias. Tchertokútski,
agora mais à vontade, chegava-se à frente, desembaraçado, a sua voz soava com desenvoltura: uma
voz donde emanava prazer.
– Uma vez lá, Vossa Excelência conhecerá a dona da casa.
– Com muito prazer – disse o general, alisando o bigode.
Depois disto, Tchertokútski quis ir imediatamente para casa, para, com antecedência, preparar
tudo para o dia seguinte. Já pegara no chapéu mas, por mais estranho que pareça, não foi. decidiu
ficar mais um pouco. Entretanto, já tinham sido postas mesas de jogo na sala. A sociedade não
tardou em dividir-se, para o whist, em mesas de quatro pessoas que se sentaram em todos os cantos
da sala.
Acenderam-se as velas. Tchertokútski demorou a decidir se sentaria ou não a jogar, mas como os
senhores oficiais insistiam em convidá-lo, pareceu-lhe que seria contra as regras de convívio
recusar-se. Sentou-se. Despercebidamente, surgiu diante dele um copo de ponche que, distraído,
emborcou num instante. Depois de jogar dois róberes, Tchertokútski voltou a achar à mão mais um
copo de ponche que também emborcou sem se dar conta, não antes ter dito: «São horas de ir para
casa, meus senhores, juro que são horas.» No entanto, ficou para mais um jogo. Entretanto, nos
vários cantos da sala, as conversas tomavam um rumo muito especial. Os jogadores de whist
estavam bastante taciturnos, mas os outros, sentados nos divãs, conversavam. O capitão, num canto,
metendo debaixo dos rins uma almofada e o cachimbo na boca, contava, de forma bastante livre e
fluente, as suas aventuras amorosas, agarrando plenamente a atenção do círculo que o rodeava. Um
proprietário rural extremamente gordo, de braços curtos lembrando um pouco duas batatas
crescidas, ouvia com um ar melífluo e apenas de vez em quando tentava meter a mão curta por trás
das costas para de lá extrair a tabaqueira. Noutro canto armou-se uma discussão bastante escaldante
sobre o treino do esquadrão, e Tchertokútski, que nesta altura já por duas vezes dera o valete em vez
da dama, intrometia-se na conversa e gritava do seu lugar: «Em que ano?», ou «De que regimento?»
sem reparar que as perguntas eram completamente despropositadas. Por fim, uns minutos antes do
jantar, acabou cerce o whist, mas foi como se ainda continuasse em todas as bocas, como se todas as
cabeças ainda estivessem cheias de whist. Tchertokútski lembrava-se muito bem de que ganhara
muito, mas não pegou em nada e, levantando-se, ficou muito tempo na pose de quem não tem lenço
no bolso. Entretanto, serviram o jantar. É óbvio que não havia falta de vinhos e que Tchertokútski,
quase involuntariamente, tinha de encher de vez em quando o seu copo porque havia garrafas à sua
direita e à sua esquerda.
A conversa que se encetou à mesa era longuíssima mas conduzida de forma estranha. Um
proprietário rural que servira no exército durante a campanha de 1812 descrevia uma batalha que
nunca aconteceu, e depois, inexplicavelmente, tirou a tampa de um jarro e espetou-a no bolo.
Em suma, quando começaram a despedir-se já eram três da manhã, e os cocheiros foram obrigados
a carregar com algumas personalidades como se fossem trouxas de compras; Tchertokútski, apesar
de todo o seu aristocracismo. sentado na caleche fazia reverências tão profundas, de tal amplidão
que chegou a casa com duas pegamassas presas ao bigode.
Em casa, toda a gente dormia. O cocheiro teve dificuldade em encontrar o criado grave. Este
ajudou então o senhor a atravessar a sala de estar e entregou-o à criada de quarto, com a qual
Tchertokútski conseguiu chegar ao quarto de dormir onde logo tombou ao lado da sua jovem e bela
mulher de camisa de noite branca de neve e deitada numa pose encantadora. O abalo provocado
pela queda do esposo na cama acordou-a. Esticou-se, ergueu as pálpebras e por três vezes
pestanejou, depois abriu os olhos com sorriso meio zangado; vendo porém que ele não estava
propenso, definitivamente, a dar-lhe qualquer carinho, virou-se com desgosto para o outro lado e,
pousando a bochecha fresca sobre a mão, adormeceu de seguida.
À hora a que nas aldeias não se chama «cedo», a jovem dona de casa acordou ao lado do marido
que ressonava. Ao lembrar de que ele voltara já depois das três da madrugada, teve pena o acordar
e, calçando as pantufas encomendadas pelo marido em Petersburgo e pondo o penteador branco que
lhe caía no corpo como água em cascata, entrou no seu boudoir, lavou a cara água tão fresca como
ela própria e aproximou-se da toilette. Olhando-se ao espelho urna e outra vez, achou que não
estava nada mal.
Esta circunstância, talvez insignificante, obrigou-a a ficar diante do espelho duas horas a mais.
Por fim vestiu-se de maneira muito querida e saiu para o ar fresco do jardim. O tempo, nem de
propósito, estava excelente, coisa de que só pode gabar-se um dia estival do Sul. O sol aproximavase
do meio-dia e embora queimasse, com toda a força dos seus raios, podia-se passear à fresca nas
alamedas, sob as copas das árvores. As flores, aquecidas pelo sol, triplicavam de fragrância. A bela
dona de casa esqueceu-se por completo de que já era meio-dia e o marido ainda estava a dormir. Já
lhe chegava aos ouvidos o ressonar pós-almoço de dois cocheiros e um boleeiro, que dormiam na
cavalariça por trás do jardim, e ela continuava sentada na espessa alameda, donde se abria a vista
para a estrada; ela olhava distraidamente para a sua monotonia desértica quando, de repente, umas
nuvens de poeira ao longe lhe chamaram a atenção. Fixando melhor os olhos, viu as carruagens que
chegavam. À frente rodava uma pequena caleça ligeira transportando um general com dragonas
grossas que brilhavam ao sol, e um coronel a seu lado. Seguia-a outra, de quatro lugares, com um
major, o ajudante-de-campo do general e mais dois oficiais; atrás vinha a famosa charrete do
regimento, desta vez na posse do major gordo; atrás da charrete vinha um bon-voyage de quatro
lugares ocupados por quatro oficiais e mais um quinto ao colo ... Atrás do bon-voyage galopavam
três oficiais em excelentes baios com manchas escuras.
«Será para nós? - pensou a senhora. – Ah, meu Deus, eles realmente viraram para a ponte!»
Soltou um grito, bateu com as mãos nas ancas e, metendo a direito pelos canteiros e pisando as
flores, correu ao quarto do marido. Este dormia como uma pedra.
– Levanta-te, levanta-te! Depressa! – gritava ela puxando-lhe a mão.
– Hã? – disse Tchertokútski estremunhado, mas sem abrir ainda os olhos.
– Levanta-te, chuchu! Ouviste? Visitas!
– Visitas? Que visitas? – Dizendo isto, emitiu um pequeno mugido como um vitelo procurando
as tetas da mãe. – Humm – resmungava ele – dá-me o teu pescocinho, bichinha. Para dar um
beijinho.
– Alminha, levanta-te depressa, por amor de Deus. É o general com os oficiais! Ah, meu Deus,
tens pegamassas no bigode.
– O general? Ah, então ele já aí vem? Mas por que raio ninguém me acordou? Então, e o
almoço? Está tudo a andar?
– Qual almoço?
– O quê, não o mandei preparar?
– Tu? Voltaste às quatro da manhã e, por mais perguntas que eu te fizesse, não disseste nada.
Não te acordei, chuchu, que tive pena de ti, não dormiste nada ... – Estas últimas palavras foram
ditas numa voz lânguida e suplicante.
Tchertokútski, agora com os olhos bem arregalados, ficou um minuto estendido, como que
fulminado por um raio. Por fim saltou da cama, só em camisa, esquecendo-se de que era indecente.
– Arre, que burro eu sou! – disse ele dando uma palmada testa. – Convidei-os para almoçar. O
que é que eu faço? Ainda tão longe?
– Não sei... devem estar a chegar.
– Alminha... esconde-te! ... Eh, alguém! Tu, rapariga! Anda cá, sua parva, por que estás com
medo? Daqui a nada chegam os oficiais. Diz-lhes que o senhor não está em casa, nem vai estar, que
saiu logo de manhã, ouviste? E avisa a criadagem toda, vai, rápido!
Disse isto e apanhou à pressa o roupão, e foi esconder-se na cocheira, supondo que lá estaria em
segurança. Porém, depois de se meter num canto do barracão, percebeu que também ali podia ser
visto. «Será melhor assim ... », passou-lhe pela cabeça e, num instante, baixou a estribeira da
caleche mais próxima, saltou para dentro, fechou as portinholas e o tejadilho, cobriu-se com o
avental, para maior segurança, e ali ficou, quietinho, enroscado e embrulhado no roupão.
Entretanto, as carruagens dos visitantes aproximaram-se da porta.
Saiu o general e sacudiu os ombros, atrás dele o coronel ajeitando o penacho do chapéu. Depois
saltou da charrete o major gordo, com o sabre debaixo do braço. A seguir saltaram do bon-voyage
os tenentes magrinhos e o alferes que viajara ao colo deles, e finalmente apearam-se dos cavalos os
galhardos oficiais.
– O meu amo não está – disse o lacaio saindo à soleira.
– Como é que não está? Mas volta para o almoço, não?
– Não, Excelência. O meu amo saiu por todo o dia. Talvez só volte amanhã para casa, a esta
hora.
– Irra, que coisa! – disse o general. – Como é possível?
– Francamente! – disse o coronel, rindo-se.
– Não, desculpem, como é possível fazer uma coisa destas? – continuou o general com
desagrado. – Chiça ... Diabo ... Se não podia receber, por que convidou?
- Não percebo, Excelência, como se pode fazer uma coisa destas – secundou um jovem oficial.
– Como? – disse o general, que tinha o hábito de utilizar este advérbio interrogativo quando
falava com um oficial subalterno.
– Digo eu, Excelência: como se pode proceder desta maneira:
– É natural ... Bom, não lhe foi possível, ou então, não sei ... Mas, ao menos, que avisasse, ou
não convidasse.
– Então, Excelência, nada a fazer, vamos embora! – disse coronel.
– Obviamente, não há outro remédio. Aliás, podemos ver caleche, mesmo sem ele.
Provavelmente não a levou. Eh, alguém! Tu, vem cá, amigo!
– Diga, meu senhor!
– És cavalariço?
– Sou, Excelência.
– Mostra-nos a caleche nova que o teu amo arranjou há pouco.
– Com certeza, faça o favor de entrar no barracão!
O general e os oficiais foram ao barracão.
– Deixem-me tirá-la um pouco para cá, porque está escuro.
– Chega, chega, está bom!
O general e os oficiais andaram à volta da caleche e examinaram minuciosamente as rodas e as
molas.
– Ora, nada de especial – disse o general – , a caleche é absolutamente vulgar.
– Sem graça nenhuma – disse o coronel –, não há nada especial nela.
– Não me parece que valha quatro mil rublos, Excelência – disse um dos jovens oficiais.
– Como?
– Estou a dizer, Excelência, que na minha opinião ela não vale quatro mil.
– Quatro mil?! Nem dois mil. Não tem absolutamente nada de especial. A não ser que haja
qualquer coisa lá dentro ... Por favor, amigo, abre o tejadilho ...
E apareceu diante dos olhos dos oficiais Tchertokútski, de roupão e enroscado de forma
invulgar.
– Ah-ah, afinal está cá! ... – disse o espantado general.
Dito isto, o general voltou a cobrir Tchertokútski com o avental, fechou as portinholas e foi-se
embora juntamente com os senhores oficiais.


Extraído do Livro “Contos de São Petersburgo”, colecção Biblioteca Editores Independentes
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