quarta-feira, 9 de julho de 2008

OUTRA VEZ NÃO-ESTAR (D.N.)

Baptista-Bastos
escritor e jornalista
b.bastos@netcabo.pt

No pequeno café onde vou todas as manhãs, ouvi, ontem, esta frase: "Portugal é o nosso exílio." Retive a frase, que me devolveu a memória de um amigo caloroso: Daniel Filipe. A associação de ideias ancorava num dos mais belos e melancólicos livros de poesia: Pátria, Lugar de Exílio, no qual Daniel Filipe dizia: "Pressinto que outra hora insepulta marca o tempo de espera."

Há uma certa similitude entre a dor de aqui existir, entoada pelo grande poeta esquecido, e a angústia de agora estar, não-estando. Pior do que o cerco e o esmagamento é a decapitação da esperança. O exílio interior é o refúgio procurado como defesa da integridade. Como naquela sombria época, vivemos, de novo, no grande cansaço do céu.

Eu estava no Brasil, em 1964. Saía de uma pátria amordaçada e, com alvoroço, almejava viver a liberdade no país verde. Cheguei e estava a desenvolver-se um golpe de Estado. Invocando Deus, pátria e liberdade, a bota cardada tomava de assalto, com um cortejo de selvajaria, miséria moral e inomináveis traições, uma democracia legítima. Foi um momento decisivo na construção do homem que sou. Durante muitos meses pelo Brasil andei, sobre o Brasil escrevi. "Mude de tom", avisou-me, num cabograma, o Artur Inêz, chefe da Redacção do vespertino República, para onde eu enviava textos exaltados, atentamente cortados pela Censura.

Um dia, em São Paulo, encontrei-me com Miguel Urbano Rodrigues, na altura o mais importante editorialista d'O Estado de S. Paulo. Deu-me a notícia, e escreveu uma crónica belíssima: Morreu Daniel Filipe: Cronista sem Coluna. Porque o poeta, também jornalista no Diário Ilustrado, escrevia crónicas comoventes sobre o Porto e a sua condição humana. O fígado estoirara-lhe: de álcool e de sofrimento moral, mas o seu gemido era um som mudo e cheio de dignidade. Tinha 39 anos. Um ano antes, havíamos trabalhado na montagem de um gabinete de Imprensa, no Laboratório Nacional de Engenharia Civil, por sugestão de um monárquico, Avelar Soeiro, homem de bem, que apenas de nome nos conhecia, e assim nos ajudava a arredondar a conta ao fim do mês, visto estarmos ambos desempregados, por motivos políticos. A história dessa circunstância ainda hoje me emociona. Que será feito de Avelar Soeiro?, com quem me encontrava, ocasionalmente, nas Portas de Santo Antão. Alguém mo diz?

Vou à estante e releio páginas de A Invenção do Amor e outros Poemas; e do Discurso sobre a Cidade, textos nos quais Daniel Filipe associa emoção com a beleza incomparável de um estilo muito próprio. E lá estão a melancolia de uma identidade assumida e o sofrimento de um homem desejadamente livre, mas amiúde negligenciado na dimensão da sua grandeza.

Agora, é outra vez não-estar, embora estando. |