domingo, 7 de junho de 2009
Vale a pena ler
Entrevista
Filósofo José Gil diz que o Ministério da Educação “virou todos contra todos”
2009-05-29 22:44:00 Clara Viana
PÚBLICO - No seu último livro apresenta o “homem avaliado” como sendo
a “figura social do século XXI”. Trata-se de facto de uma alteração
radical? Ser-se avaliado não é propriamente uma novidade destes
tempos.
José Gil - Estamos a falar de uma situação generalizada na sociedade
dita da modernização. Não é só em Portugal, é em toda a Europa. Não há
duvida que não pode haver aprendizagem sem haver avaliação e que toda
a aprendizagem, a mais arcaica que se conheça, a aprendizagem do
discípulo que tinha um mestre na Renascença, na pintura, ou na Índia
com um yogui que ensinava um discípulo. Em todas essas práticas há
avaliação. Quer dizer a avaliação é inerente, necessária, à própria
aprendizagem.
O que é que, se é que, se transformou nesta tal sociedade da
modernização? O que é que se fez, modificou na ordem de relação entre
aprendizagem e avaliação para que se possa falar agora de um homem
avaliado para o século XXI? Tenho a impressão que há vários factores.
Primeiro há um factor que acho fundamental. É que a avaliação arcaica
era uma avaliação não quantitativa. Era uma avaliação mais qualitativa
ou intensiva. Depois a avaliação tende a tornar-se funcional e se
possível, quando possível, quantificada, desenvolvendo parâmetros.
E incluindo nesses parâmetros o próprio terreno de aprendizagem que
não é quantificado. Há sempre na aprendizagem aquilo que se chamava
antigamente na filosofia, e hoje também, a intuição. A intuição é
fundamental porque se aprende à sua maneira. Não é um dado formal,
universal, que se possa definir da mesma maneira para todos.
P - Não se pode comparar, quantificar?
JG - Não. O que se põe agora nos parâmetros e critérios de avaliação,
que se multiplicaram, é uma espécie de factores analisados,
decompostos, daquilo que era o terreno da intuição. Por exemplo,
mede-se a criatividade. Ora a criatividade o que é? O que é a produção
do novo? Como é que se inventa? Quais são os processos de invenção?
Como sabemos, na ciência, a invenção está muitas vezes fora da
escolaridade, do ensino, das regras. São as pessoas um bocado
desviantes que fazem as maiores descobertas e depois tornam-se Nóbeis,
etc. Isto tudo é abolido pelo controlo da avaliação. Quer dizer vai-se
abolir a singularidade, a capacidade de inovação, porque se integra
este terreno da intuição numa aferição da performance, do desempenho,
que é quantificável.
Ameaça à criatividade
P - O que é que propicia essa mudança? É a globalização? O modo de produção?
JG - Acho que é absolutamente o modo de produção. O economicismo não é
só português, é por toda a Europa. O que significa que os critérios de
avaliação que vão transformar essa intuição, essas capacidades, esse
acaso que há em nós, e que pode provocar cruzamentos que, de repente,
fazem nascer qualquer coisa, vão ser formatados, vão ser avaliados. E
como não se pode avaliar isso, as pessoas que vão ser submetidas a
essa avaliação vão ser homogeneizadas, o que conduz à morte da
singularidade. E isto é muito importante.
O que aconteceu foi, portanto, uma inversão a ordem de subordinação
aprendizagem/conteúdos, por um lado, e, por outro lado, a avaliação
.Quer dizer que a avaliação multiplicou os seus parâmetros e absorveu
o terreno da aprendizagem, de tal maneira que passou a ser o critério
que vai definir a aquisição de conhecimentos, os resultados da
aprendizagem, etc. Antigamente era o contrário. A avaliação, por um
lado, já estava integrada e subordinada à formação do indivíduo e à
aquisição de conhecimentos e integrada num, terreno em que se mexia
também toda uma série de factores de que nós não podemos ter,
felizmente, o controlo. Que são os factores da criação.
P - As utopias políticas do século passado anunciaram um “homem novo”.
A avaliação, como a descreve, aponta para um homem com uma postura de
subordinação. Qual é o objectivo que está subjacente?
JG - A formação de uma subjectividade adequada às exigências da
economia da globalização, da economia que vem aí, cujo eixo principal
é o capitalismo, de que nós talvez ainda nem conhecemos as formas. Mas
isso parece-me evidente. E o que é mais paradoxal é que nunca se falou
tanto em criatividade, em inovação como agora, quando se estão a impor
os meios de um controlo para que a inovação, criatividade,
desapareçam.
P - Institui-se a avaliação como meio de controlo, como relação de poder?
JG - É uma questão de controlo e uma questão de poder. Isto não vai
fazer desaparecer a inovação, não vai fazer desaparecer as grandes
descobertas científicas. O que vai fazer é criar um hiato, uma
separação cada vez maior. Vai haver uma elite hipercientífica,
filosófica não sabe, hiperespecializada, e essa sim poderá inovar.
Para os outros estamos a multiplicar os parâmetros de avaliação,
absorvendo essa margem de indeterminação num espaço de controlo cada
vez maior. E com isso estamos a acabar precisamente com a
experimentação interior, o erro possível, a liberdade interior que é
possível e necessária à criação.
Há uma multiplicação extraordinária da extensão da avaliação. Hoje
todos somos avaliados. Em tudo. Avalia-se as performances sexuais, as
performances desportivas, psíquicas
P- Parentais
JG - Parentais, cognitivas. E tudo para um fim que é predeterminado, a
produtividade. Estamos a querer cobrir toda a margem da actividade
pelo conhecimento. É por isso que se diz que é uma sociedade de
conhecimento. Quer dizer não estamos, estamos a fazer como se devesse
reduzir ao máximo, e imediatamente e rapidamente, o campo da
ignorância. Ora o conhecimento vem da ignorância. É preciso que haja
não conhecimento, que haja ignorância, que haja qualquer coisa que não
está imediatamente lá. E isto porquê? Porque o conhecimento é
relativo. Ora a julgar que estamos a esgotar todo o campo da
actividade de criação, quando não é isso, é qualquer coisa que nós não
sabemos o que é, e que talvez seja necessários que não saibamos para
que haja criação.
Relação afectiva foi destruída
P- Pode-se dizer que o modelo de avaliação aprovado para os
professores do ensino básico e secundário constitui uma
exponencialização do fenómeno que descreveu?
JG – Absolutamente, porque, para empregar a sua palavra, houve uma
exponencialização dos parâmetros. É incrível o número de parâmetros,
das grelhas de avaliação, das propostas. Sem se saber como é possível.
Em Portugal passou-se uma coisa muito má. Tudo aquilo, a avaliação que
o Ministério propõe, com que não estou de acordo, pressupõe uma
relação entre professor e aluno que foi destruída.
Quando se vai aferir numa grelha de avaliação a relação afectiva entre
professor e aluno, porque somos muito espertos e sabe-se que a
afectividade
tem uma importância enorme na cognição, na aprendizagem cognitiva. Mas
a relação afectiva foi destruída.
P - Não estava já a sê-lo antes?
JG - Tem vindo a ser destruída, mas actualmente a sua destruição foi
precipitada pró esta reforma. E pelo tratamento a que os professores
foram submetidos. É preciso que o professor uma autoridade
espontânea. E idealmente não tenha que a exercer. A relação antiga do
mestre e discípulo na Renascença, por exemplo, é essa. Não é uma
relação de poder.
P - É uma relação de reconhecimento?
JG - Em que o discípulo vai aprendendo para chegar ao ponto em que ele
vai estar no máximo das suas possibilidades. Não é uma comparação
entre mestre e discípulo. Ele já não precisa do mestre e é o mestre a
dizer-lhe: ‘Vai-te embora’. Isso já não existe agora, mas é um modelo
de que nós precisamos, de certa maneira.
Nas crianças, na escola primária, a relação afectiva com a professora
é fundamental para as aprendizagens Se se corta esse laço aquilo dá
imediatamente impossibilidades. É um obstáculo.
Posso dizer, toda a gente pode dizer, que um dos efeitos da politica
do Ministério da Educação foi virar todos contra todos. Virou-se os
alunos contra os professores. Como é que é possível dar uma aula nas
condições que me contam os meus alunos, que são hoje professores?
P- É uma característica que também já vem de trás, que não é apenas
responsabilidade deste Ministério. É também da comunidade, das
famílias?
JG – Sim, mas o que se fez foi precipitar uma tendência que deveria
ter sido estancada. Denegriu-se ainda mais, com aspectos que nós
conhecemos, que são denunciados, e que são verdadeiramente
insuportáveis. Não é só a arrogância de que se fala, é o desprezo.
Depois ser desprezado pelos alunos. O desprezo leva ao desprezo que os
alunos podem ter e podem exprimir. Quem és tu? diz o aluno para o
professor. Como é que quer que haja grelhas de aferição da
aprendizagem ou que haja aprendizagem que funcione neste esquema?
P- Parece ser a vertente esquecida, quando é fundamental da escola, a
aprendizagem
JG- A aferição, a avaliação, tem de decorrer dos conteúdos e não o
contrário. E isto foi feito com multiplicação amadorística, nada
profissional, era quase para cobrir uma falta de pensamento sobre o
que ensino, sobre o que é ensinar, sobre o que a formação. Não estou
falar em velhas ideias humanista de formação. Sei que é preciso outras
coisas novas. Mas disso tem que se falar. O que é que se ensina, como
se ensina? Como desenvolver uma curiosidade que preexiste na criança?
Hoje ninguém mostra curiosidade. Não há curiosidade. Porquê? Depois
aparecem as arrogâncias da ignorância, que é o pior que há.
Você não existe
P– No seu entender, qual é o objectivo deste modelo de avaliação?
JG - Em Portugal havia uma espada de Damocles sobre o Ministério,
todos os Ministérios, que é o dinheiro. Por outro lado, há um problema
real de que os sindicatos não falam.
A nossa escola não estava boa. Muitos professores, ou pelo menos uma
parte deles, não têm qualificações. Com a avaliação, alegadamente,
matavam-se dois coelhos: reduziam-se as despesas, reduzindo o pessoal,
e punha-se fora os que não eram bons.
Mas o que é que aconteceu?. Muitos dos que eram bons é que saíram.
sairam. Porquê? Não aguentam. E o que é que eles não aguentam? Não
aguentam não poder ensinar, não aguentam não poder ter uma relação em
que precisamente se construa um grupo em que o professor age, em
aprende ensinando, em que os alunos querem.
Tem que haver avaliação. Não pode é haver a inversão da subordinação
da avaliação porque agora se estuda para se ser avaliado. Veja as
Novas Oportunidades, para que é que serve?
P- Para fornecer um diploma?
JG- É o chico-espertismo que entrou na escola. Vamos não trabalhar
para obter um diploma.
P- No seu livro alega que há como que um objectivo maior. Conjugando
as políticas e omodo como o Ministério reagiu à contestação dos
professores, está-se perante uma estratégia de domesticação?
JG- Isso parece-me evidente. É um projecto maior, que talvez não seja
muito consciente na cabeça dos nossos dirigentes e, em particular, na
do primeiro-ministro José Sócrates.
A ideia intuitiva, ele ainda tem intuições, é a de que o autoritarismo
é um método económico. Resolvem-se mil coisas. Há essa ideia: funciona
ser autoritário. Uma vez vendo que funciona, vamos estender. Os
portugueses querem um certo autoritarismo, nós todos, que estamos
desnorteados, perdidos. O autoritarismo é um meio de governo. Não é
traço qualquer. E como não há quase resposta a este autoritarismo, ele
rebate-se, plasma-se, na realidade.
P- Mas existe contestação. Por exemplo, precisamente por parte dos
professores ao longo de todo este ano.
JG - E qual foi a resposta do Governo? Foi uma resposta autoritária
extraordinária que foi dizer: você não existe. Faz-se como se 120 mil
manifestantes não existissem e isso vai paralisar, vai desmoralizar. A
primeira fase é a perplexidade, depois vem o desânimo, depois vem a
depressão. Certamente que muitos que pediram a reforma antecipada
estavam na manifestação.
P - Ficámos com uma escola pior?
JG- Arriscamo-nos a isso. A escola já não era boa. A escola precisa de
reformas, é necessário pensar uma avaliação, mas para pensar uma
avaliação temos primeiro que pensar em conteúdos. A primeira das
coisas a fazer é revalorizar os professores, agora. A relação geral
dos alunos relativamente ao saber é de rejeição. A ideia do professor
como alguém que abre as portas para o mundo acabou ou está em vias de
acabar. Isto tem de ser restaurado.
Depois tem que se parar com a avaliação multiplicada a todo o
instante. Estamos sempre a comparar-nos. O mal desta avaliação é que
ela compara e a competitividade, a rivalidade, que existem numa
escola, que são necessárias para a aprendizagem, torna-se inveja.
O chico-espertismo
P - A avaliação entre pares, defendida neste modelo, pode acentuar
ainda mais esse risco?
JG- Por mais voltas que dê, não vejo como isso possa ser feito no
clima actual. É muito mais propícia que toda uma série de rivalidades
não saudáveis comecem a aparecer, para que novamente a esperteza
arranje canais para que a avaliação seja deturpada, mascarada. Para
mim, é envenenar ainda mais. A avaliação tem de ser feita por um
terceiro. Alguém de fora, mas da mesma disciplina. Não pode haver
professores de Educação Física a avaliar um professor de Português.
P- O chico-espertismo de que fala é uma característica dos
portugueses, que encontrou agora um campo mais propício?
JG - Foi o Marcelo Rebelo de Sousa que disse que Sócrates era um meio
chico-esperto. Quando há uma característica pessoal de um chefe e este
tem a possibilidade de a tornar real, transformando mecanismos
psíquicos em comportamentos, isso provoca patologias colectivas. Mas
patologias não só das pessoas, como patologias do funcionamento dos
serviços. E o que parece estar a constituir-se é um chico-espertismo,
uma palavra horrível.
P – O que é espera do próximo ano lectivo?
JG – Nada. Eu estou desolado. Estou desolado com o que está a
acontecer, porque esperava muito da educação.
P- Nesta legislatura?
JG- Sim, no princípio. Mas foi muito rápido ver que a coisa não ia
bem. É uma oportunidade perdida. Quando ouço os economistas dizerem
que Portugal pode ficar entalado, há qualquer coisa no meu ser
português que vibra mesmo. Porque podíamos ser outros. Temos terrenos
de afectividade em escolas que já não existem noutros lados. Considero
muito grave a quebra do laço entre alunos e professores. É tudo mal
feito. Há que inflectir, revalorizar os professores.
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