segunda-feira, 13 de outubro de 2008
se calhar já nascemos com um papelinho na mão....
Espera-se para tudo, somos feitos não de carne, de paciência, se calhar já nascemos com um papelinho na mão. Retire aqui o seu bilhete e aguarde a sua vez. Aguardo a minha vez. Desde que me conheço que aguardo a minha vez
Tanto silêncio nesta casa e tanta voz que me fala. Da janela vejo as mulheres que sobem a rua levando os sacos do supermercado. A rua é inclinada e elas devagarinho passeio acima, com os tendões dos braços saídos, os tendões do pescoço saídos, o cabelo a tremer. Porque razão me comovem na manhã suja, outonal, de setembro? As árvores começam a perder as folhas, pombos por aqui e por ali, vários cinzentos feios nas nuvens. Um par de homens a consertarem não sei quê num buraco. Deve ser isto o que as pessoas chamam vida e, se é isto, que miséria: ninguém sorri. Tenho de ir aos Correios buscar livros da América, de França, do raio que o parta: tira-se um papelinho com um número, espera-se entre gente que espera. Da última vez tirei o número 65, ia a procissão no 12. Fico séculos para ali, a olhar. Espera--se para tudo, somos feitos não de carne, de paciência, se calhar já nascemos com um papelinho na mão. Retire aqui o seu bilhete e aguarde a sua vez. Aguardo a minha vez. Desde que me conheço que aguardo a minha vez. A minha vez de quê? E lá fora uma chuvinha sem peso. Um princípio não bem de frio, de desconforto.
– O que fazes no mundo, António?
– Aguardo a minha vez.
Uma senhora de papelinho para outra de papelinho
– Já não estou cá a fazer nada e na época em que estava cá a fazer alguma coisa o que fazia? Emprego – marido – filhos – reforma – netos e agora varizes – coração – diabetes – ossos, este alto no pescoço. Amanhã análises no hospital, outro papelinho com um número, depois do papelinho da consulta em que ouviu
– Não gosto do seu alto e o doutor a escrever, a arrancar a página, a estender-lha
– Precisamos de uns examezinhos.
A outra senhora
– Que direi eu com os miomas e uma conversa densa de afluentes, sub-afluentes e lagoas acerca de pontadas, desconfortos, cólicas, o marido às voltas com a próstata, a pingar toda a noite. A do alto no pescoço
– Molha-me o pijama todo e a que não tem alto enviuvou: uma coisa no pâncreas resolveu-lhe o matrimónio em três meses e enfiou-lhe, em lugar de uma, duas alianças no dedo:
– Mandei apertar a dele para não me cair de modo que traz o que resta do marido ali. Ficam ambas a olhar as alianças, num interesse melancólico. O falecido cobrador do gás, grande, forte
– Vendia saúde deve tê-la vendido toda e quando precisou de comprar não achou nas retrosarias, ele que a possuía aos montes.
– Nunca faltou ao trabalho insistia a viúva, de tal maneira a saúde era inclemente e excessiva e parece que o amor ao medronho também, a calcular por referências laterais respeitantes ao facto de aos sábados à noite abrir a porta de casa a pontapé
(– Levava tudo à frente)e acabar de gatas na cozinha a vomitar a alma. Fora isso era um cordeirinho
– Fora isso era um cordeirinho bom esposo, bom pai, bom amigo, bom avô, até bom genro
– Até bom genro, calcule sempre pronto a ajudar, sem amantes.
– Já lhe chegava o vinho sugeriu a outra e a conversa amorteceu porque a viúva não gostou da insinuação e além disso o número dela aproximava-se. O problema era que o número anterior, um rapaz de bigode, trazia cinquenta cartas para registar, e nós todos, os que esperávamos, pensámos num julgamento sumário com condenação à forca e execução imediata, sem possibilidade de apelo ou recurso. Os restantes balcões de atendimento achavam-se vazios dado que as empregadas discutiam o gel nas unhas de uma colega que exibia dez navalhas escarlates na ponta dos dedos. O gel foi aprovado por unanimidade e exclamações e fiquei a saber que a proprietária das navalhas se chamava Suzete Mendonça e o namorado a queria sensual
– Como as actrizes porno precisou uma de óculos e cachucho de pechisbeque no indicador e as colegas deu-me a ideia de acharem bem, mudando a linha do debate para cintos de ligas e artigos correlativos até voltarem, com um suspiro de penitentes, às suas cadeiras, onde ficavam minutos compridos a meditar nos cintos, esquecidas de nós, enquanto a que se chamava Suzete Mendonça estudava os apêndices com orgulho, a viúva rodava a aliança, saudosa do bom genro e eu principiava a zangar--me com o facto de ser tão traduzido, decidindo romper o contrato com a minha agência e imaginando a que se chamava Suzete Mendonça em atitudes sensuais, difíceis de conseguir numa criatura tão magra e com um quisto sebáceo na testa. Mas podia ser que o gel anulasse o quisto e incendiasse o namorado, com a ajuda do piercing que trazia na língua, uma esfera cromada do tamanho de uma bola de pingue-pongue que a obrigava a uma pronúncia de sopinha de massa. Daqui a quantos anos chegará a sua altura de já não estar cá a fazer nada? Das análises no hospital? Do médico
– Não gosto do seu alto? das unhas de gel uma recordação perdida? Do divórcio, da reformazinha que aumentava os dias do mês? Do cinto de ligas no lixo? Do namorado a queixar-se do pâncreas? Toda a existência termina com a frase
– Precisamos de uns examezinhos e uma senha de papel num laboratório de análises onde Suzetes Mendonças ainda por nascer demorarão a atendê-la, discutindo meias de rede e poses sensuais.
A.Lobo Antunes- Crónicas
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4 comentários:
Li-a no sábado, no café. Estou a começar a entrar nos eixos! :)
Se calhar nascemos destinados a mais tarde ou mas cedo ter um papelinho. Mas o pior mesmo é quando o papelinho é colocado no dedo grande do pé, mesmo que em sentido figurado.
Grande crónica, grande observador...
Boa noite, António.
bOA nOITE pASSI. tINHA SENTIDO A SUA FALTA.eSPERO QUE NAO ANDA (TAL COMUNOSOUTROS) A SUAR AS ESTOPINHAS...
sALUT!
Foi o fim de semana todo agarrada ao teclado e ao papel.
Só que eu já não estranho...
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